sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Começa com Fê e não termina


            Não precisa falar. Não quer falar. Fica calado. Mão no queixo, olhar distante observando, imperceptivelmente, tudo a sua volta. De repente... Uma câmera um estalo uma piscada e, é claro, um lápis.
            Essa conversa de olhos que é tão engraçada, tão íntima e acolhedora, chama a todos. Ninguém fica fora da brincadeira. “Vamos criar? Só mais um pouquinho, por favor. Hoje eu estou todo cinema. Quero uma filmadora seguindo cada boca que é para pegar cada expressão. Não. Desse jeito não.” E gestos, gestos, gestos... Todos abrem os olhos ansiosos, esperando. “O que ele quer dizer com esse movimento todo, meu Deus do céu?”. É a palavra que não vem, contraditório. Mas é tão claro, chega a ser estranho as pessoas não entenderem. “Eu quero – mãos – é... – dedos – quero... – mão no rosto.”
            Cada frase é poesia. Ele todo a é. Uma misteriosa, divertida, descritiva, a-d-j-e-t-i-v-a. É magia, quase bruxaria. Sabe de tudo. Ele nos lê e não precisamos falar. Nos suborna com um charme teatral “me dá sua história?”. Caçador de frases cotidianas diferentes, que brilhem, para que ele possa segurá-las, melhorá-las e entregá-las de presente ao caderno que vira livro.
            E não há abraço mais leve. Ele deve pensar: “Se eu apertar demais talvez esprema palavras que não preciso” e ele só quer o necessário. Então alisa as costas do abraçado. Pronto. O pouco já revela o carinho da pessoa amiga que ouve e aconselha, falando sempre o que precisamos ouvir. É bruxaria. Mais que isso, é observação. Mais que isso, é amizade.
            Vamos, meu bem. Suba na janela e não espere, vá. Deixe que o vento - que traz as palavras transparentes – te leve e te aperte, para você explodir em contos, os outros poderem te respirar e, finalmente, Fernandoriar.
Com muito carinho para meu amigo Fernando.
 Laysa Menezes

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Riso


                Olhos castanhos e ansiosos procuravam os olhos verdes que passariam por ali. O desfile anual da escola parecia um dia nublado antes que ele surgisse no meio de alguns outros pezinhos. Demorava um pouco. A menina roía as unhas, os dedos, as mãos, até que surgia o sol penteado, de cinto e botinhas. Ela puxava as amigas e sorria empolgada. “Olha ali, como é lindo!”, falava feliz. Sentia seu coração empurrando o peito pra frente. “É amor, é amor! Com certeza é!” e as amigas em coro respondiam como apoio “É claro que é!”. E entravam numa discussão sobre os sentimentos do menino - aquele ele-gosta-não-gosta.
- Vocês mal se falam... Mas acho que ele gosta.
- Ah, ontem ele sorriu pra ela. Vocês ainda têm dúvidas?
                De repente gelo. A menina apertava forte as mãos das amigas. Ele estava passando na sua frente. Era frio, dor, calor, amor... A hipótese do amor. O menino olha. Desvia o olhar. E a garota se torna esperança acabada, balão estourado, flor arrancada.
- Calma, amiga. Ele gosta de você. Acho que é o nervosismo. Faz a gente esquecer o mundo.
- Ele tem que saber que eu gosto dele – calculava a apaixonada iniciante de nove anos – Já sei. Vou fazer uma carta de amor!
                Pediu à mãe papéis de carta, para colecionar, “como a senhora também fazia”.  A mãe achou graça, comprou papéis, envelopes, adesivos. Era uma explosão de rosa com corações.
                Um dia estava sozinha em casa. Ou quase. O pai dormia no sofá da sala. Oportunidade perfeita. A menina pegou as canetas coloridas, os outros materiais e pôs-se a escrever. Falou da falta de comunicação, do sentimento guardado, de tudo. Para finalizar colocou duas figurinhas antecedidas pelas frases: “Sei que estamos assim” - e dois bonecos de mãos dadas – e “Mas queria que estivéssemos assim “- e dois bonecos se beijando. Pensou em desistir, mas a loucura e insanidade alegre das crianças a fez continuar com a aventura.
                Pediu para que uma amiga entregasse na sala dele. Risos. Aplausos. Gracinhas. Procura. Conversa. Abraços. Presentes. Reticências. Eternizou-se. Amizade.
Laysa Menezes

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

A velhinha da encruzilhada


Obs.: Este texto é uma releitura de uma lenda folclórica. Será que você consegue identificar?
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                Naquele ponto de quatro saídas, empoeirado e musicalizado pelo forte suspiro do vento, uma velhinha morava num trailer. Acompanhados na solidão estavam: ela, os gatos, os passarinhos, os cachorros e os outros tantos bichos que por vezes apareciam. O que antes era floresta se transformou em deserto. A única árvore que havia sobrevivido aos “derruba-tudo”, como dona Pira os chamava, era a Mangueira. Essa era sua protegida, seu lugar para relaxar depois de situações mais complicadas, quando as pessoas são mais difíceis e desconfiadas. Por ter falhado em seu trabalho, a velha, tão pequenininha, vivia estressada.
                Às vezes um vrum-vrum chato vinha nervoso até ali. Dona Pira apertava as mãos com força e arrastava o chinelo até a porta do trailer. Na rua, uma cabeça pra fora da janela do carro gritava para ela.
- Por favor! A senhora pode me dar uma informação?
                Dona Pira, com ódio, mordia os próprios dentes, mas, dissimulada, transparecia calma.
- Claro que posso. Pois não?
- A senhora sabe qual desses caminhos vai dar naquele condomínio novo? O... Mata Verde?
- Engraçado ter esse nome. É bem ambíguo, não é?
- É? Bom, a senhora sabe para que lado ele fica?
 - Você vai morar lá?
- Não, vai ter uma festa de inauguração... A senhora sabe ou não sabe?
- Você costuma confiar em estranhos? – O homem riu.
- Dona... A senhora não é do tipo que se desconfia, sabe? Mora num lugar calmo. Está na idade de relaxar, não de aprontar.
- Hum...
- Eu deveria desconfiar?
- Não. – Por dentro, Pira gargalhava prevendo a vitória – Só me preocupo. Essa juventude confia demais, não é?
- Concordo. Pra que lado fica mesmo o condomínio?
- E o senhor é a favor do desmatamento?
- E a senhora faz parte do senso do IBGE?
- Responda. – A velha arregalou os olhos para o homem, que ficou acanhado.
- Pelo jeito o condomínio é bom, então...
- É por ali, seguindo em frente.
- Muito obrigado! – Disse grato, sem desconfiar.
                Ela deu um tchau frenético, esperando pelo resultado do seu trabalho. Seu sorriso diabólico crescia cada vez que o carro avançava em direção ao destino sugerido. De repente um susto, uma gargalhada e uns pulinhos. O homem festeiro havia caído no precipício que existia bem ali, “seguindo em frente”. Dona Pira olhou satisfeita para as placas de sinalização que escondeu atrás do trailer. Foi para debaixo da árvore solitária, pegou uma manga, chupou e respirou aliviada. Foi bem-sucedida. O azar foi do homem que não reparou nos pés dela.
                Laysa Menezes

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Boi da cara preta


- Um, dois, três e... E...
- Vai logo! – Gritou o rapaz.
- Calma! Tenho que tomar coragem. – Respondeu a nervosa.
- Sabia que você não ia conseguir.
- E já!
                A menina apaixonada e o menino mais velho saíram correndo, sorrindo de desespero, ladeira abaixo. Era uma vertente íngreme, esburacada, cheia de árvores que surgiam de repente na frente da dupla. Eles se enganaram pensando que depois de dar o primeiro passo conseguiriam parar. A descida foi feita de trombadas, tropeços, rolamentos, aberturas... Seria uma corrida ou uma apresentação circense? Um espetáculo de aventura! E era bem isso que os dois queriam. Se não queriam... Conseguiram do mesmo jeito.
                Pretendiam chegar ao sítio que ficava depois da floresta-que-machuca. Ele pegaria mangas e ela goiabas, como o combinado. O menino ficou com a mangueira porque era mais alta e por causa do desejo que ele tinha pela fruta. A menina ficou com a goiabeira porque foi a primeira que lhe passou pela cabeça. Na verdade ela nem gostava de frutas e argumentava para quem quisesse ouvir: “A culpa é da industrialização e não minha!”.
                Quando conseguiram se arrastar até a cerca, ela, agora manca, não tinha um chinelo – e ainda estava no lucro. Já ele, mais alto, encontrara umas protuberâncias na testa no meio do caminho, quando bateu naquela imensidão de ramos. Pra que tanto galho? Pra que tanto galo, meu Deus?
                A mais nova Saci-Pererê e o bêbado-sem-cachaça se encaminharam para suas respectivas árvores. Sem conseguir raciocinar, o garoto alisava o tronco. A companheira, sem saber o que fazer, pois nunca tinha se embrenhado no mato, imitava o amigo. Que cena bonita era aquela. Quanto amor à natureza, quanto...
- AH! – Gritou, assustada, a menina
- Ãn? – Disse o distraído.
                No meio deles, com um olhar de possuído e raivoso, um cachorro rosnava e latia compulsivamente.
- Um cachorro? – As sequelas permaneciam.
- Não, esse é o próprio cão!

                O cachorro, preto feito carvão, devia ter um pouco de pena dos jovens. Por isso continuava só com aquele latido meio irônico, sarcástico, estranho.
- O que a gente faz? Eu não sei subir em árvore!
- A gente enfrenta – O herói deu um passo para perto do demônio animalizado, enquanto o bicho já olhava com desprezo e desânimo para os dois.
 - Não! Eu não quero que você morra! – Declaração de amor subentendida.
- Eu não vou morrer, é só um cachorro. Vem cá, totó!
- Êpa! Totó já é demais. Eu estava sendo tolerante com vocês, mas me ridicularizar... Ah, não. – falou o cachorro.
- É o cão! É o cão! Senhor, eu sou uma boa menina! Me salva! – E não é que ela aprendeu a subir em árvores?
- Vixe! É o demo mesmo! Sai desse corpo, deixa o pobre animal viver em paz!
- Vocês, crianças, tão idiotas, ingênuas e estúpidas. Minha filha, se eu sou o demônio e consegui possuir um cachorro o que te faz pensar que eu não vou subir aí para te pegar? E, menino, vai dormir. Que tédio! Vou acabar logo com isso.
                Houve gritos, latidos, choro, riso, mordida, riso, lambida, riso, sangue, riso. Nenhuma fruta, só tragédia. Será que eles tinham medo de careta?
                Laysa Menezes

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Sem título digno para sua complexidade.

               Não tem nada igual. Nada que se compare nem que tenha a mesma grandiosidade que isso tem. Finalmente poder rever a minha filha, tão pequena. Meu bem, andando naquela motoca colorida. Eu choro, corro, sorrio. Ela para, desce do brinquedo e corre até mim. Abre a boca, com alguns dentes a mais que da última vez, e ouço sua voz, fininha, gritando “Mamãe! É a minha mãe! É a minha mãe!”. Tudo valeu a pena.
               Eu queria esconder para sempre. Colocar uma faixa na barriga. Desaparecer. Na verdade eu só queria que meus pais ignorassem. Não contei para ninguém e não pensava em contar antes de ficar óbvio. Mas minha mãe – sempre sábia, sensitiva, e outros adjetivos destinados às mães – desconfiou. Fomos pro hospital da capital, eu seria examinada na presença dela. Tentei desfazer isso perguntando se ela não tinha alguma coisa para resolver, algumas contas para pagar...
- Eu tenho, minha filha. Que bom que você me lembrou. Vou e volto rapidinho.
              Deus do céu, como eu rezei! Pedi mil vezes para que tivesse uma fila interminável no banco, que ela demorasse, que ela chegasse depois da consulta. Mas isso não aconteceu. Ela estava comigo no momento em que chamaram meu nome, em que eu suei e desejei não estar ali.
- Então, doutora. Ela está grávida? – Houve uma troca de olhares entre mim e a médica. Eu, desesperada, e a médica, lamentosa.
- Pois é, temos que fazer alguns exames para confirmar, mas tudo indica que sim.
               Não consegui mais olhar para minha mãe, não tinha mais esse direito. Ao sair do consultório só chorei, sem parar, compulsivamente.
- Minha filha, por que você não me contou? Por que não me pediu ajuda?
- Não sei, mãe, não sei. Desculpa. – E eu não parava de chorar.
              Imaginava a vergonha que minha mãe deveria sentir. Entre seis filhos, sua filha mais nova foi a primeira a engravidar. Apenas dezoito anos. Menina direita, de boa família. Numa cidade pequena como Penedo, com que fama a família ficaria? Mas minha mãe nunca demonstrou nada parecido. Ela foi forte, mais que ninguém.
              No mesmo dia voltamos para casa. Primeiro mamãe contou para meu pai. Eu não tinha coragem. Ele sempre foi um homem duro. Não sei se ia continuar gostando de mim. Depois reunimos toda a família. Os três homens e as outras duas mulheres. Eu ainda não falava.
- Meus filhos, tenho uma notícia muito séria para dar à vocês. – Tensão - A Mônica está grávida.
- O QUÊ?
                As meninas correram para me consolar e me perguntar como eu tinha deixado aquilo acontecer, enquanto os meninos gritavam felizes “Vamos ser titios!”, “Teremos uma sobrinha!”.
                Três dias depois meu pai pediu para que eu chamasse meu namorado para contar a novidade e para que eles conversassem. César nunca tremeu tanto. Meu pai já causava medo e nunca teve uma relação boa com os namorados das filhas, mas naquele dia tudo estava pior.
- Eu caso, eu caso com ela, seu Nilson.
- Eu sei, você não é nem doido de não casar. Vai casar sim e o mais breve possível.
                Casamos. Novos e com medo. As fotos do casamento mostram uma felicidade cheia de preocupação. Depois de mais de um ano do nascimento de Laysa nossa situação financeira ficou mais difícil. Deixamos a bebê na casa dos meus pais, onde ela morou por três meses, para procurar emprego em Maceió.
A saudade se mostrou insuportável. Mas tudo valeu a pena.
Laysa Menezes

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

A vida é bela


Há momentos em que a situação está tão completamente ferrada que o sujeito é odiado até por ele mesmo.
Apresento-lhes Mariano. Homem direito, carismático. Homem de Deus. Nasceu da mãe errada, teve o pai errado. Estudou na escola que não era lá a mais correta e foi para a faculdade que não queria.
                Todos os dias, Mariano, na insistência de ser Polyanna com seu jogo do contente, levantava da cama sempre com a mesma ilusão: “esse será um ótimo dia”. No café da manhã encontrava a mãe, com aquela cara de semimorta ou semiviva – o filho nunca soube diferenciar bem estes dois estados –, se esforçando para cantar alguma coisa, o que era frustrante, aterrorizante e até dolorido para os pobres ouvintes que sorriam de desespero. Interpretando de forma errônea o sorriso, a mulher cantava mais alto, queria aplausos. E assim o dia começava mal para o pobre rapaz.
                Buscando carinho e compreensão olhava para o pai surdo que nunca havia sentido interesse em aprender libras. Não se comunicava. Eram só olhares vegetativos, vazios. Todo ele era reprodução de cenas vistas no cotidiano de seus humildes e pacientes pais. Por isso gostava de bater na mesa e fingir fúria quase sempre. Isso assustava a esposa e os filhos. Talvez fosse por isso que ela andasse meio desorientada... Enfim, depois dos socos voltavam os mesmos olhares profundos, flertando com o nada. Mariano admirava o poder de sedução do pai, pois, mesmo sendo um exemplo locomotivo de plantas raivosas, conquistou sua mãe. Repensou a ideia de que a mulher andasse desorientada. Talvez ela fosse assim desde sempre.
                Sorrindo, deu bom dia ao irmão mais novo que o olhou com desprezo dizendo: “Você é perturbado. Vai se tratar, Barbie”. E Mariano não desistia, não deixava a decepção tomar conta de si. Um exemplo de menino! Fechou os olhos, voltou a sorrir e respondeu ao irmão: “Eu sei que está passando por uma fase ruim, mas você vai superar”, conselho de qualquer péssimo psicólogo. “Vai tomar...” o irmão da fase ruim foi interrompido pelas batidas descontroladas do pai, que urrava pra mãe, que cantarolava feliz, na ponta dos pés, dando um oi para o dia. O mais novo se levantou chutando a cadeira e gritando: “Morram! Eu vou embora dessa casa!”. Mariano olhou a bagunça. Foi arrebatado pela sanidade e percebeu – finalmente - o descontrole da família. Tentou achar um motivo para a felicidade no mais íntimo de seu ser, mas a realidade havia possuído o pobre desiludido. A raiva foi crescendo, nascendo das mãos apoiadas na mesa que balançava com os murros do pai, passando por seus braços, chegando ao tronco, se espalhando pelo corpo até a cabeça. Ao chegar nesta última, Mariano dá um grito absurdamente alto, talvez o segundo depois de seu nascimento, fala seus primeiros palavrões e joga a comida no rosto do pai-surdo que não sabe que reação ter. A mãe olha, chocada. O filho vai até ela, calmo, e fala no seu ouvido: “Você não canta bem, não canta. NÃO CANTA!” e empurra a mãe que deve ter morrido antes do segundo “canta”.
                O caçula, que havia conseguido presenciar a cena, olhou satisfeito para o irmão. “Agora você aprendeu que quando um não quer dois não brincam, não foi, Marianozinho?”. Mariano olhou o vegetal, a morta e o problemático e viu que agora sim eram uma família normal. Na verdade o anormal sempre foi ele.
Laysa Menezes

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Lá, Lá, Lá

Uma nota que precede: Ganhei esse texto de presente de aniversário, ele foi escrito pelo meu querido amigo Fernando Ananias, um escritor a ser descoberto.
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Os pés descalços molhando-se na grama indo embora sozinhos, o salto nas mãos, sua beleza cansada de fim de festa. E como é linda a literatura encarnada nas voltas do cabelo. Tão linda, sem saber que a gente te namora. Que a cercamos todos os dias, atraídos pelo sossego alegre da sua paz.
Lay, Lay, Lay. Sete tons alaranjam suas luzes. Seu olhar de risada, seus dentes que riem, sua fala encantada. Toda a sua cor é riso. E tudo o que diz os derrete, aqueles que a amam, que a entendem, que se poetizam em você. A alegre calma que leva o brilho das palavras ao rosto, a energia de dança. O humor certeiro, apressado como uma flor com horário marcado com o sol. Sol. Dó, ré, mi, fá. . Bem longe, onde as Ninas se nefelibatam. Si.  Se as sete notas fossem gente e te abraçassem fazendo cócegas de amor, seria você que riria.  Seria você, atriz anônima, se fazendo aérea, levitando na felicidade de ser Helena.
Quando falta o doce, sei que escreve no sopro de um balão. Dedilhando leveza na página branca, fazendo o violão gargalhar. Tomando doses de descalmapax, descontrole em frascos bem pequenos. Curtos e vigorosos como os seus escritos. Branco no cinza, você é crônica em poesia.
Agora, Laysa, diga, bem engraçada, com seu falar encantado, o que quer. Nós traremos. Já trouxemos. Vamos voar.
Por: Fernando Ananias
Carinhosamente encomendado por todos que te amam

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Caído

A manhã ainda estava dormindo quando saí de casa. Tropecei numa pedra cinza e gigante. Era um sinal. Abri a mochila e peguei o caderno de anotações. “Pedra cinza... pedra gigante... Ah, bem aqui: Causar discórdia”. Fechei o caderno, sorri e fui pro mundo.

Ao descer do ônibus, na porta da livraria, vi o casal que mais me causa repulsa lá dentro. Lindos, simpáticos e sem nenhuma demonstração de inteligência. Perfeitos para a minha aventura diária.

Aproveitei a presença de uma dessas mulheres que quer se sentir culta por estar numa livraria - dessas que ficam folheando livros de autoajuda e entram na loja com uma postura inexistente quase impecável – para brincar. Olhei para o enamorado que atendia a moça. Cheguei perto da dona dele, no balcão. Só queria conversar um pouquinho.

- Vocês dois estão brigados?

- O quê?

- Vocês dois estão brigados?

- Vocês dois quem? – Você e o Machado de Assis. Sinceramente... Não se fazem mais boas vítimas.

- Você e o Marcelo.

- Marcelo... – Ela sorriu e acenou para ele, que para minha sorte estava muito concentrado no trabalho – Não, por quê?

- Ah... por nada. - Lançou-se o mal.

- Fala!

- Não, nada.

- Começou agora fala! – São todas iguais

- É que... Ele tá te tratando diferente. Olha, nem te acenou de volta! Você não acha que ele está muito próximo daquela bonitona ali, não?

Ela Apertou os olhos, tentando ver melhor. Mentira falada, verdade provada.

- Você acha?

- Olha só! Ele está pegando na cintura dela! – Obrigado, ilusão de ótica.

- Não acredito! Como ele pode estar fazendo isso na minha frente!

- Pior quando ele te esconde...

- Esconde??? Do que você sabe?

- Ops... Melhor eu ficar quieto. – Ela me olhou, suplicante. – Tá. Algumas vezes, enquanto você ia comprar o almoço, ele dava em cima das clientes. Até trocavam números de celular.

- Algumas vezes? Mais de uma? – Demonstração de compreensão única.

- Pois é. Se eu fosse você iria tirar satisfação com ele agora.

- Agora? Em horário de trabalho e com ele atendendo?

- E você vai deixar isso pra depois? – Ela respirou fundo e se armou com toda sua fúria.

Eu não queria mais trabalhar ali mesmo. Enquanto a, agora desesperada, miss simpatia ia correndo, derrubando estantes e tudo que visse pela frente – inclusive a mulher – para espancar seu namorado com uma força inimaginável, eu saía satisfeito com a aventura. Liguei pro chefe, disse que a loja estava uma baderna e que eu queria me demitir. Desliguei antes de qualquer reposta. Sorri para o céu azul que me esperava lá fora.

Opa! Uma pessoa com camisa branca. É um sinal. “Camisa preta... camisa amarela... camisa branca, aqui! Humm, minha preferida.”

Se o inferno são os outros eu sou o próprio diabo.

Laysa Menezes

sábado, 20 de agosto de 2011

Lição

A abelha apareceu atordoando toda a família.

Barulhenta e boba, beliscando nossa bigorna.

Com cuidado caminhei até ela

Deixando de lado discursos dispensáveis de parentes.

Era extravagante o amarelo estampado em seu corpo.

Fiquei focada na abelha e fincada ao seu lado, feliz.

Gostava de garantir a segurança de seres pequenos.

Habilidosa, a abelha , como de hábito, entrou num mínimo buraco.

“Ilha inabitada de humanos” era como eu chamava.

Jamais juízo, joelho e gente tinham entrado ali.

Logo comecei a labirintar longe, buraco adentro, rasgando-o

Momento mágico

Nunca nada se equiparou a isso.

Os olhos não ocultam o fascínio.

Por um momento, parei de respirar e só admirava a colônia secreta

Quando quase fui encontrada pela abelha rainha que voava.

Ruídos, realeza, tudo se misturando.

Só soube admirar os pontos amarelos brilhantes no ar.

Tinha tudo tão perto de mim. Queria tocar...

Ui! Por que ela me picou?

Vão embora! Parem de me magoar, me trair.

Xô!!!!

Zumbido coisa nenhuma, nunca mais sigo abelhas.

Laysa Menezes

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Filosofias de boneca

E Deus?

- Deus é o nome do papai do céu, não é? Por que Ele escolheu esse nome? Por que não escolheu Arthur que é mais bonito, igual o do meu priminho?

Ela, sentada na cama, balançava os pezinhos que não conseguiam tocar o chão. Filosofava com uma grandeza e sabedoria não tão estranhas para crianças.

- Ele está em todos os lugares? Mas como pode? Ele tem poderes de super heroi? Ou é mágico? Ou... Ah já sei! Mamãe, Deus não pode estar em todos os lugares.

- Por quê? – A mãe sorria.

- Porque é impossível. Mas ele sabe de tudo de todo mundo porque tem uma televisão gigante. Ele não é grande? Muito grande? Então. Deve precisar de uma televisão grandona também. E nela aparecem todas as pessoas do mundo, tudo o que estão fazendo... Aaaaah, eu sei de uma coisa que Deus não sabe.

A mãe levantou uma sobrancelha e sentou na cama ao lado da pequena, olhou séria para a filha e do jeito mais carinhoso que havia falou:

- Meu amor, não existe coisa que o papai do céu não saiba.

- Existe sim. As coisas que estão aqui, mamãe, na nossa cabeça. O que eu falo e você não ouve. O que só eu sei e só conto se quiser. Deus por acaso sabe o que ninguém diz?

- Sabe, o Senhor sabe tudo, lê mentes.

- Não lê, não. Como pode, hein? Ninguém faz isso. Ah, não, mamãe. Pare de mentir pra mim!

- Não estou mentindo. Só lendo mentes é que Deus consegue traçar o destino de cada um, de acordo com suas vontades, entendeu?

- Traçar destinos? Como assim?

- Construir a sua vida.

- Mas não sou eu que construo a minha vida? Mãe, papai do céu tá muito danadinho. Ele lê o que eu guardo na minha cabeça, constrói a minha vida... Parece até o que eu faço com as minhas bonecas. Por que a gente nasce? Pra Deus brincar com a gente? Entendi. Olha, mãe, nós até somos um pouco “Deus”. Nós também usamos os brinquedos para nos divertir um pouco. Mamãe, será que Ele gosta de brincar comigo?

Posso escolher um nome feio também?

segunda-feira, 20 de junho de 2011

A nefelibata

Helena subiu uma escada infinita até chegar ao topo do céu. Pela primeira vez olhou para cima. Sorriu. Deitou. Olhou os pontos brilhantes e os viu, em montes, escorregando pelo escuro, dizem que se fizer um desejo no momento exato da queda eles vêm até você, pegam o desejo e o realizam. Em troca pedem um espelho, são vaidosos. A menina continuava a sorrir até que ouviu a voz de Nino, do seu lado, dizendo: “Boba”. Despertou do seu transe e abraçou seu querido, sussurrando: “Bobo é quem não retribui o sorriso da lua”. A partir daí ignorou novamente o mundo a sua volta e dormiu ouvindo estrelas.

Acordou sendo carregada aos pulos por uma rã gigante. Sentiu a pele úmida e, por horas, se perguntou como o bicho tinha conseguido tal façanha.

- Dona rã, como você conseguiu me colocar nas costas?

- Coach.

- Como?

- Coach.

- Ah é, rãs ainda não falam.

- Coach, coach.

- O passeio foi bom, obrigada por me carregar, mas tenho que ir agora.

E a rã saiu pulando para bem longe. Para o mar. Assim descobriram que os anfíbios têm espírito suicida.

Helena caminhou pela lama grudenta que puxava seu sapato feito de flores. Encostou-se em uma árvore para descansar e brigar um pouco com a terra que não a deixava em paz. Lembrou-se de Nino. Onde ele estaria para não ver que ela tinha sido raptada por uma rã? Olhou para cima e viu o gigante Tuiuiú no topo da árvore, se fazendo rei. Queria conversar com ele, mas se achou plebeia. Do lado as asas das borboletas davam palmadas no ar. Elas, juntas, iam tonalizar o nascer do sol. A menina pediu carona e todas, num flap, flap, flap, aceitaram. Panapanã e a humana passeavam por cima do rio enquanto as Traíras, invejosas, tentavam voar também, mas logo desistiram.

Deixada pelas borboletas na terra vermelha, Helena, agora pintada de todas as cores, pôs-se a catar o amado em todos os lugares. Perguntou para a árvore, para o senhor jacaré - que sempre sabe de tudo e é muito inteligente -, para o sol e ninguém, nenhum ser existente, sabia do paradeiro de Nino. Preocupou-se. Sentou no começo daquela primeira escada e desesperada, chorou. Chamou por Nino baixinho, porque se gritasse machucava o ouvido do vento. Chorou em seus joelhos por muito tempo, até que o menino surgiu ao seu lado, acariciando-lhe as costas, perguntando o que houve. Ela o abraçou e perguntou:

- Onde você se meteu que nem o jacaré soube dizer?

Pegando em sua mão ele respondeu que estava na hora de voltar, mas a menina não queria.

- Helena, o tempo passou. Temos que voltar.

- Não passou, não temos.

- Você tem compromissos lá.

- Não tenho. Me deixa ficar. E fica comigo...

O menino, insistente na realidade, puxou a nefelibata e os dois foram embora do mundo idealizado-existente. Prometeram voltar. Na despedida, Helena deu um beijo em tudo que havia, via e ouvia e com um tchau molhado disse: Até logo, meu Pantanal.

Laysa Menezes

terça-feira, 17 de maio de 2011

Neurótica

A luz está focada em duas cadeiras no meio do palco voltadas uma para outra. Na primeira está sentada uma mulher que aparenta estar impaciente. Entra em cena outra andando depressa em direção a cadeira vazia.

LUÍSA - (Sentando na cadeira) Desculpa, doutora, o ônibus atrasou.

PSICÓLOGA - Tudo bem... (Olha anotações em um caderno)Luísa, certo?

LUÍSA - Sim.

PSICÓLOGA - Então, Luísa, o que acontece?

LUÍSA - Bom, as pessoas dizem que eu sou neurótica.

PSICÓLOGA - Hum... E por que elas dizem isso?

LUÍSA - Porque eu sempre penso que minha menstruação vazou.

PSICÓLOGA - Sua... Menstruação... vazou. (Com a aparência de quem concorda em chamarem Luísa de neurótica)

LUÍSA – VASOU!? (Erguendo as mãos para o céu) Senhor, por que me abandonaste?

PSICÓLOGA – (Fica olhando incrédula por um tempo. Depois pisca e volta a falar) Não, não. Acalme-se, só estava organizando meus pensamentos.

LUÍSA – Ah (Aliviada). Nossa, quase que você me matava.

PSICÓLOGA – (Sussurra) É pior do que eu pensava... (Falando alto) Então, por que você pensa isso toda hora?

LUÍSA - É que é o seguinte doutora, eu acho isso uma nojeira e uma falta de cuidado absurda! Então toda vez que eu fico menstruada penso que vai acontecer comigo.

PSICÓLOGA – (Anotando no caderno) Como você age nesses dias?

Luísa levanta e vai em direção às cadeiras de sala de aula dispostas no outro lado do palco, onde a luz é focada. Um grupo de pessoas entra em cena e senta nas cadeiras.

LUÍSA - Nos dias que ela me visita toda vez que eu vou para a aula sento na cadeira (Senta), passo a aula inteira pensando no meu absorvente e quando é hora de ir embora levanto suando frio (Levanta) e olho para a cadeira para ver se tem alguma poça (Olha). Se vejo que sim cogito me matar ali mesmo. Se vejo que não, passo a mão na bunda (Passa) para ver se tem alguma coisa úmida ou suspeita, só para checar. Quando vou andando na rua (Sai da sala de aula e começa a andar pelo palco onde passam pessoas, como numa rua agitada) sinto que todos estão olhando para mim com pena, como se dissessem...

TODOS - Lú, vazou!

LUÍSA - Então só por segurança ando com um casaco para amarrar em minha cintura a qualquer momento. (Sorri e volta para a cadeira em frente à outra mulher)

PSICÓLOGA – (Embasbacada) Estou perplexa. (Respira fundo) Há mais alguma coisa que você queira me contar?

LUÍSA – Hum... Não... Ah, algumas vezes isso acontece quando eu não estou menstruada.

PSICÓLOGA – O quê!?

LUÍSA – Isso também acontece quando eu não estou menstruada.

PSICÓLOGA – (Levanta, anda de um lado para o outro com a mão na cabeça) É, querida... (Para e olha para Luísa) Temos um longo trabalho pela frente.

A luz apaga. As mulheres saem e tudo é retirado do palco. Apenas Luísa volta. Age como se estivesse saindo de casa.

LUÍSA – Tchau mãe, até mais tarde.

Um homem entra em cena, vê a mulher e vai na direção dela.

HOMEM – Lú! Como foi...

LUÍSA – (gritando) Nem vem que a minha menstruação desse mês já passou!

As cortinas se fecham.

terça-feira, 3 de maio de 2011

Paixãozinha démodé

Mariana, sempre azarada, amou um menino que a amou também. Repetiam um para o outro o que falavam todos os dias para o espelho, para a cadeira, para o computador, com a mesma importância. Era um “eu te amo” quase sincero muito valorizado.

“Eles combinam!”, as pessoas cochichavam baixo o suficiente para que o casal ainda pudesse ouvir. A menina e o menino sempre andavam juntos, se beijavam quando se viam e novamente quando se despediam - “Que fofos!”. Mariana mandava para o suposto amado textos românticos, copiados de agendas de amigas, parecidos com aqueles textos eternos e onipresentes. O namorado pagava sua entrada para o cinema. Eram perfeitos e comuns.

Um dia Mariana sentiu náuseas de ouvir aquela frase gasta (finalmente, Mariana!). Cogitou a possibilidade de terminar a relação, mas era tudo tão bem visto pelos outros. As aparências tinham que ser mantidas e o garoto concordava. Davam as mãos ao andarem na rua, em casa e até acompanhavam o outro até a porta do banheiro. Era afeto, cuidado e amor, acima de tudo o amor.

“Amor coisa nenhuma!”, disse a menina para seu namorado. Não aguentando mais a prisão optada os dois arrumaram um jeito de explicar a separação. Brigaram em público. A causa? Ciúmes, é claro. Há então motivo mais démodé? “É isso que dá amar demais, a pessoa fica possessiva, ciumento. Eram um casal tão bonito...”, comentavam.

É, meus caros, o sonhado que se concretiza é só uma farsa da realidade.

Laysa Menezes

sábado, 16 de abril de 2011

Amassa

Faltava doce. O sal estava presente em todas as refeições da academia militar, mas o açúcar... Faltava doce. O paladar das pessoas já idealizava o grão branco sem gosto salgado. Tinha frutas, tinha adoçante, porém nada se comparava ao gosto real do cristalzinho.

Os soldados reclamaram aos cabos que reclamaram ao sargento, chegando ao coronel, até que – finalmente – tiveram uma resposta. O coronel anunciou que no dia seguinte haveria bolo de chocolate na sobremesa da segunda refeição.

O alvoroço foi grande. Nunca se almoçou tão rápido e nunca foi tão alto o índice de indigestão dos militares. Depois do almoço, formou-se uma fila no balcão em que se pegaria a sobremesa. O bolo ainda não estava pronto. Algum tempo depois surgiu, da cozinha, do outro lado do refeitório, um traço branco que se transformou numa mulher carregando uma, apenas uma, bandeja com pedaços de bolo.

Sargento Kal, conhecido por sua justiça e sagacidade, percebeu que não haveria mais bandejas e ele, que estava no final da fila, não conseguiria nada. Utilizando, então, só a sagacidade (“Justiça coisa nenhuma!”), andou com o braço estendido, cada vez mais rápido, em direção à mulher que já não estava tão distante. Os soldados que analisavam a situação perceberam logo as intenções do esperto sargento e puseram-se a fazer a mesma coisa. Novas pessoas foram fazendo o mesmo e outras e outras. Formou-se um amontoado de dedos, rostos, pernas, chocolate e ponto branco. Acabou-se tudo. Bolo e moral. Faltava doce.

Laysa Menezes

quarta-feira, 2 de março de 2011

O pessimista (reescrito)

Meu avô, já velhinho, vive de namorico com a senhora dona morte. Não há outro assunto que o interesse. Um dia eu e minha irmã fomos para a casa dele, visitá-lo, e ele estava na varanda, lendo um livro. O título: “Depois da morte”. Minha irmã, que cisma com essas ideias tenebrosas por parte dele, disse logo:

- Mas, ! Por que ler um livro desses? Não tem outro?

- Claro, minha netinha. Por favor, pegue ali em cima da mesa “a morte de um estranho”.

Eu sorria discreta no meu cantinho. Observar um avô nunca foi tão divertido e cansativo. Cansativo, sim. Imagine escutar tantas vezes a palavra morte em um curto espaço de tempo!? Tentei convencê-lo de que iria viver muito ainda, mas o velho gosta do pessimismo.

Chamando o resto da família para a varanda, na tentativa de tornar a conversa mais diversificada, surgiu a curiosidade de saber quantos anos minha avó teria. Cada pessoa chutava um ano de nascimento, o qual ninguém acertava, nem seus filhos. Então, cansada de ouvir erros, ela falou:

- Nasci em 38!

E meu avô, dignamente respondeu:

- 38 é uma boa arma.

Ao se despedir de mim, para não perder o hábito, não deu a bênção de costume e sim um “Até o paraíso, minha netinha”. Ele ainda vive, ansioso para que a dama de voz tão convidativa se aproxime.

Laysa Menezes

Dura como pedra

Beijo o teto para mostrar a todos nossa relação. Temos um namoro que começou por um selinho que nunca se acabou. Meus pés tocam o chão (e por acaso sou passarinho para saber voar?), seria mais apropriado dizer que eles chutam, esmagam, esfregam, destroem o chão. Ele não quer me largar, não entende que o de cima foi o que me conquistou.

Enquanto tenho uma proximidade com esses dos quais já falei, os outros, os humanos – esses pequenos danadinhos que ficam para lá e dalí para longe – me negam a existência. Aliás, sou lembrada por eles sim. Quando querem informar algo vêm logo a mim, pendurar aquelas placas grudentas que não consigo me livrar, não tenho braços.

Na fila do almoço fico muito constrangida. Uma floresta de mãos, braços e pernas, passa por mim, mas não na intenção de me acariciar e sim para ter algum encosto na espera inacabável e entediante que é a característica universal das filas. Fico com raiva, pois o teto permanece imparcial. Nem para ter um pouquinho de raiva? Essa relação não vai durar muito... Mas voltando a floresta de corpos, quando não me cobrem para descansar usam-me como objeto de brincadeira, esconderijo de pega-pega.

Depois ainda reclamam, às vezes, que sou muito dura. E como não ser? Não recebo nenhum tipo de afeto da parte deles, ainda costumam soltar “ela é feia e cinza!”, como ser bonita se não me fazem assim? Eu sustento o céu de tijolos deles e não sou retribuída de nenhuma forma, mas continuo aqui. Talvez a dureza me faça resistente, psicologicamente.

Pilastra