sexta-feira, 30 de setembro de 2011

A velhinha da encruzilhada


Obs.: Este texto é uma releitura de uma lenda folclórica. Será que você consegue identificar?
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                Naquele ponto de quatro saídas, empoeirado e musicalizado pelo forte suspiro do vento, uma velhinha morava num trailer. Acompanhados na solidão estavam: ela, os gatos, os passarinhos, os cachorros e os outros tantos bichos que por vezes apareciam. O que antes era floresta se transformou em deserto. A única árvore que havia sobrevivido aos “derruba-tudo”, como dona Pira os chamava, era a Mangueira. Essa era sua protegida, seu lugar para relaxar depois de situações mais complicadas, quando as pessoas são mais difíceis e desconfiadas. Por ter falhado em seu trabalho, a velha, tão pequenininha, vivia estressada.
                Às vezes um vrum-vrum chato vinha nervoso até ali. Dona Pira apertava as mãos com força e arrastava o chinelo até a porta do trailer. Na rua, uma cabeça pra fora da janela do carro gritava para ela.
- Por favor! A senhora pode me dar uma informação?
                Dona Pira, com ódio, mordia os próprios dentes, mas, dissimulada, transparecia calma.
- Claro que posso. Pois não?
- A senhora sabe qual desses caminhos vai dar naquele condomínio novo? O... Mata Verde?
- Engraçado ter esse nome. É bem ambíguo, não é?
- É? Bom, a senhora sabe para que lado ele fica?
 - Você vai morar lá?
- Não, vai ter uma festa de inauguração... A senhora sabe ou não sabe?
- Você costuma confiar em estranhos? – O homem riu.
- Dona... A senhora não é do tipo que se desconfia, sabe? Mora num lugar calmo. Está na idade de relaxar, não de aprontar.
- Hum...
- Eu deveria desconfiar?
- Não. – Por dentro, Pira gargalhava prevendo a vitória – Só me preocupo. Essa juventude confia demais, não é?
- Concordo. Pra que lado fica mesmo o condomínio?
- E o senhor é a favor do desmatamento?
- E a senhora faz parte do senso do IBGE?
- Responda. – A velha arregalou os olhos para o homem, que ficou acanhado.
- Pelo jeito o condomínio é bom, então...
- É por ali, seguindo em frente.
- Muito obrigado! – Disse grato, sem desconfiar.
                Ela deu um tchau frenético, esperando pelo resultado do seu trabalho. Seu sorriso diabólico crescia cada vez que o carro avançava em direção ao destino sugerido. De repente um susto, uma gargalhada e uns pulinhos. O homem festeiro havia caído no precipício que existia bem ali, “seguindo em frente”. Dona Pira olhou satisfeita para as placas de sinalização que escondeu atrás do trailer. Foi para debaixo da árvore solitária, pegou uma manga, chupou e respirou aliviada. Foi bem-sucedida. O azar foi do homem que não reparou nos pés dela.
                Laysa Menezes

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Boi da cara preta


- Um, dois, três e... E...
- Vai logo! – Gritou o rapaz.
- Calma! Tenho que tomar coragem. – Respondeu a nervosa.
- Sabia que você não ia conseguir.
- E já!
                A menina apaixonada e o menino mais velho saíram correndo, sorrindo de desespero, ladeira abaixo. Era uma vertente íngreme, esburacada, cheia de árvores que surgiam de repente na frente da dupla. Eles se enganaram pensando que depois de dar o primeiro passo conseguiriam parar. A descida foi feita de trombadas, tropeços, rolamentos, aberturas... Seria uma corrida ou uma apresentação circense? Um espetáculo de aventura! E era bem isso que os dois queriam. Se não queriam... Conseguiram do mesmo jeito.
                Pretendiam chegar ao sítio que ficava depois da floresta-que-machuca. Ele pegaria mangas e ela goiabas, como o combinado. O menino ficou com a mangueira porque era mais alta e por causa do desejo que ele tinha pela fruta. A menina ficou com a goiabeira porque foi a primeira que lhe passou pela cabeça. Na verdade ela nem gostava de frutas e argumentava para quem quisesse ouvir: “A culpa é da industrialização e não minha!”.
                Quando conseguiram se arrastar até a cerca, ela, agora manca, não tinha um chinelo – e ainda estava no lucro. Já ele, mais alto, encontrara umas protuberâncias na testa no meio do caminho, quando bateu naquela imensidão de ramos. Pra que tanto galho? Pra que tanto galo, meu Deus?
                A mais nova Saci-Pererê e o bêbado-sem-cachaça se encaminharam para suas respectivas árvores. Sem conseguir raciocinar, o garoto alisava o tronco. A companheira, sem saber o que fazer, pois nunca tinha se embrenhado no mato, imitava o amigo. Que cena bonita era aquela. Quanto amor à natureza, quanto...
- AH! – Gritou, assustada, a menina
- Ãn? – Disse o distraído.
                No meio deles, com um olhar de possuído e raivoso, um cachorro rosnava e latia compulsivamente.
- Um cachorro? – As sequelas permaneciam.
- Não, esse é o próprio cão!

                O cachorro, preto feito carvão, devia ter um pouco de pena dos jovens. Por isso continuava só com aquele latido meio irônico, sarcástico, estranho.
- O que a gente faz? Eu não sei subir em árvore!
- A gente enfrenta – O herói deu um passo para perto do demônio animalizado, enquanto o bicho já olhava com desprezo e desânimo para os dois.
 - Não! Eu não quero que você morra! – Declaração de amor subentendida.
- Eu não vou morrer, é só um cachorro. Vem cá, totó!
- Êpa! Totó já é demais. Eu estava sendo tolerante com vocês, mas me ridicularizar... Ah, não. – falou o cachorro.
- É o cão! É o cão! Senhor, eu sou uma boa menina! Me salva! – E não é que ela aprendeu a subir em árvores?
- Vixe! É o demo mesmo! Sai desse corpo, deixa o pobre animal viver em paz!
- Vocês, crianças, tão idiotas, ingênuas e estúpidas. Minha filha, se eu sou o demônio e consegui possuir um cachorro o que te faz pensar que eu não vou subir aí para te pegar? E, menino, vai dormir. Que tédio! Vou acabar logo com isso.
                Houve gritos, latidos, choro, riso, mordida, riso, lambida, riso, sangue, riso. Nenhuma fruta, só tragédia. Será que eles tinham medo de careta?
                Laysa Menezes

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Sem título digno para sua complexidade.

               Não tem nada igual. Nada que se compare nem que tenha a mesma grandiosidade que isso tem. Finalmente poder rever a minha filha, tão pequena. Meu bem, andando naquela motoca colorida. Eu choro, corro, sorrio. Ela para, desce do brinquedo e corre até mim. Abre a boca, com alguns dentes a mais que da última vez, e ouço sua voz, fininha, gritando “Mamãe! É a minha mãe! É a minha mãe!”. Tudo valeu a pena.
               Eu queria esconder para sempre. Colocar uma faixa na barriga. Desaparecer. Na verdade eu só queria que meus pais ignorassem. Não contei para ninguém e não pensava em contar antes de ficar óbvio. Mas minha mãe – sempre sábia, sensitiva, e outros adjetivos destinados às mães – desconfiou. Fomos pro hospital da capital, eu seria examinada na presença dela. Tentei desfazer isso perguntando se ela não tinha alguma coisa para resolver, algumas contas para pagar...
- Eu tenho, minha filha. Que bom que você me lembrou. Vou e volto rapidinho.
              Deus do céu, como eu rezei! Pedi mil vezes para que tivesse uma fila interminável no banco, que ela demorasse, que ela chegasse depois da consulta. Mas isso não aconteceu. Ela estava comigo no momento em que chamaram meu nome, em que eu suei e desejei não estar ali.
- Então, doutora. Ela está grávida? – Houve uma troca de olhares entre mim e a médica. Eu, desesperada, e a médica, lamentosa.
- Pois é, temos que fazer alguns exames para confirmar, mas tudo indica que sim.
               Não consegui mais olhar para minha mãe, não tinha mais esse direito. Ao sair do consultório só chorei, sem parar, compulsivamente.
- Minha filha, por que você não me contou? Por que não me pediu ajuda?
- Não sei, mãe, não sei. Desculpa. – E eu não parava de chorar.
              Imaginava a vergonha que minha mãe deveria sentir. Entre seis filhos, sua filha mais nova foi a primeira a engravidar. Apenas dezoito anos. Menina direita, de boa família. Numa cidade pequena como Penedo, com que fama a família ficaria? Mas minha mãe nunca demonstrou nada parecido. Ela foi forte, mais que ninguém.
              No mesmo dia voltamos para casa. Primeiro mamãe contou para meu pai. Eu não tinha coragem. Ele sempre foi um homem duro. Não sei se ia continuar gostando de mim. Depois reunimos toda a família. Os três homens e as outras duas mulheres. Eu ainda não falava.
- Meus filhos, tenho uma notícia muito séria para dar à vocês. – Tensão - A Mônica está grávida.
- O QUÊ?
                As meninas correram para me consolar e me perguntar como eu tinha deixado aquilo acontecer, enquanto os meninos gritavam felizes “Vamos ser titios!”, “Teremos uma sobrinha!”.
                Três dias depois meu pai pediu para que eu chamasse meu namorado para contar a novidade e para que eles conversassem. César nunca tremeu tanto. Meu pai já causava medo e nunca teve uma relação boa com os namorados das filhas, mas naquele dia tudo estava pior.
- Eu caso, eu caso com ela, seu Nilson.
- Eu sei, você não é nem doido de não casar. Vai casar sim e o mais breve possível.
                Casamos. Novos e com medo. As fotos do casamento mostram uma felicidade cheia de preocupação. Depois de mais de um ano do nascimento de Laysa nossa situação financeira ficou mais difícil. Deixamos a bebê na casa dos meus pais, onde ela morou por três meses, para procurar emprego em Maceió.
A saudade se mostrou insuportável. Mas tudo valeu a pena.
Laysa Menezes

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

A vida é bela


Há momentos em que a situação está tão completamente ferrada que o sujeito é odiado até por ele mesmo.
Apresento-lhes Mariano. Homem direito, carismático. Homem de Deus. Nasceu da mãe errada, teve o pai errado. Estudou na escola que não era lá a mais correta e foi para a faculdade que não queria.
                Todos os dias, Mariano, na insistência de ser Polyanna com seu jogo do contente, levantava da cama sempre com a mesma ilusão: “esse será um ótimo dia”. No café da manhã encontrava a mãe, com aquela cara de semimorta ou semiviva – o filho nunca soube diferenciar bem estes dois estados –, se esforçando para cantar alguma coisa, o que era frustrante, aterrorizante e até dolorido para os pobres ouvintes que sorriam de desespero. Interpretando de forma errônea o sorriso, a mulher cantava mais alto, queria aplausos. E assim o dia começava mal para o pobre rapaz.
                Buscando carinho e compreensão olhava para o pai surdo que nunca havia sentido interesse em aprender libras. Não se comunicava. Eram só olhares vegetativos, vazios. Todo ele era reprodução de cenas vistas no cotidiano de seus humildes e pacientes pais. Por isso gostava de bater na mesa e fingir fúria quase sempre. Isso assustava a esposa e os filhos. Talvez fosse por isso que ela andasse meio desorientada... Enfim, depois dos socos voltavam os mesmos olhares profundos, flertando com o nada. Mariano admirava o poder de sedução do pai, pois, mesmo sendo um exemplo locomotivo de plantas raivosas, conquistou sua mãe. Repensou a ideia de que a mulher andasse desorientada. Talvez ela fosse assim desde sempre.
                Sorrindo, deu bom dia ao irmão mais novo que o olhou com desprezo dizendo: “Você é perturbado. Vai se tratar, Barbie”. E Mariano não desistia, não deixava a decepção tomar conta de si. Um exemplo de menino! Fechou os olhos, voltou a sorrir e respondeu ao irmão: “Eu sei que está passando por uma fase ruim, mas você vai superar”, conselho de qualquer péssimo psicólogo. “Vai tomar...” o irmão da fase ruim foi interrompido pelas batidas descontroladas do pai, que urrava pra mãe, que cantarolava feliz, na ponta dos pés, dando um oi para o dia. O mais novo se levantou chutando a cadeira e gritando: “Morram! Eu vou embora dessa casa!”. Mariano olhou a bagunça. Foi arrebatado pela sanidade e percebeu – finalmente - o descontrole da família. Tentou achar um motivo para a felicidade no mais íntimo de seu ser, mas a realidade havia possuído o pobre desiludido. A raiva foi crescendo, nascendo das mãos apoiadas na mesa que balançava com os murros do pai, passando por seus braços, chegando ao tronco, se espalhando pelo corpo até a cabeça. Ao chegar nesta última, Mariano dá um grito absurdamente alto, talvez o segundo depois de seu nascimento, fala seus primeiros palavrões e joga a comida no rosto do pai-surdo que não sabe que reação ter. A mãe olha, chocada. O filho vai até ela, calmo, e fala no seu ouvido: “Você não canta bem, não canta. NÃO CANTA!” e empurra a mãe que deve ter morrido antes do segundo “canta”.
                O caçula, que havia conseguido presenciar a cena, olhou satisfeito para o irmão. “Agora você aprendeu que quando um não quer dois não brincam, não foi, Marianozinho?”. Mariano olhou o vegetal, a morta e o problemático e viu que agora sim eram uma família normal. Na verdade o anormal sempre foi ele.
Laysa Menezes

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Lá, Lá, Lá

Uma nota que precede: Ganhei esse texto de presente de aniversário, ele foi escrito pelo meu querido amigo Fernando Ananias, um escritor a ser descoberto.
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Os pés descalços molhando-se na grama indo embora sozinhos, o salto nas mãos, sua beleza cansada de fim de festa. E como é linda a literatura encarnada nas voltas do cabelo. Tão linda, sem saber que a gente te namora. Que a cercamos todos os dias, atraídos pelo sossego alegre da sua paz.
Lay, Lay, Lay. Sete tons alaranjam suas luzes. Seu olhar de risada, seus dentes que riem, sua fala encantada. Toda a sua cor é riso. E tudo o que diz os derrete, aqueles que a amam, que a entendem, que se poetizam em você. A alegre calma que leva o brilho das palavras ao rosto, a energia de dança. O humor certeiro, apressado como uma flor com horário marcado com o sol. Sol. Dó, ré, mi, fá. . Bem longe, onde as Ninas se nefelibatam. Si.  Se as sete notas fossem gente e te abraçassem fazendo cócegas de amor, seria você que riria.  Seria você, atriz anônima, se fazendo aérea, levitando na felicidade de ser Helena.
Quando falta o doce, sei que escreve no sopro de um balão. Dedilhando leveza na página branca, fazendo o violão gargalhar. Tomando doses de descalmapax, descontrole em frascos bem pequenos. Curtos e vigorosos como os seus escritos. Branco no cinza, você é crônica em poesia.
Agora, Laysa, diga, bem engraçada, com seu falar encantado, o que quer. Nós traremos. Já trouxemos. Vamos voar.
Por: Fernando Ananias
Carinhosamente encomendado por todos que te amam