Há momentos em que a situação
está tão completamente ferrada que o sujeito é odiado até por ele mesmo.
Apresento-lhes
Mariano. Homem direito, carismático. Homem de Deus. Nasceu da mãe errada, teve
o pai errado. Estudou na escola que não era lá a mais correta e foi para a
faculdade que não queria.
Todos
os dias, Mariano, na insistência de ser Polyanna com seu jogo do contente,
levantava da cama sempre com a mesma ilusão: “esse será um ótimo dia”. No café
da manhã encontrava a mãe, com aquela cara de semimorta ou semiviva – o filho
nunca soube diferenciar bem estes dois estados –, se esforçando para cantar
alguma coisa, o que era frustrante, aterrorizante e até dolorido para os pobres
ouvintes que sorriam de desespero. Interpretando de forma errônea o sorriso, a
mulher cantava mais alto, queria aplausos. E assim o dia começava mal para o
pobre rapaz.
Buscando
carinho e compreensão olhava para o pai surdo que nunca havia sentido interesse
em aprender libras. Não se comunicava. Eram só olhares vegetativos, vazios.
Todo ele era reprodução de cenas vistas no cotidiano de seus humildes e
pacientes pais. Por isso gostava de bater na mesa e fingir fúria quase sempre.
Isso assustava a esposa e os filhos. Talvez fosse por isso que ela andasse meio
desorientada... Enfim, depois dos socos voltavam os mesmos olhares profundos,
flertando com o nada. Mariano admirava o poder de sedução do pai, pois, mesmo
sendo um exemplo locomotivo de plantas raivosas, conquistou sua mãe. Repensou a
ideia de que a mulher andasse desorientada. Talvez ela fosse assim desde
sempre.
Sorrindo,
deu bom dia ao irmão mais novo que o olhou com desprezo dizendo: “Você é
perturbado. Vai se tratar, Barbie”. E Mariano não desistia, não deixava a
decepção tomar conta de si. Um exemplo de menino! Fechou os olhos, voltou a
sorrir e respondeu ao irmão: “Eu sei que está passando por uma fase ruim, mas você
vai superar”, conselho de qualquer péssimo psicólogo. “Vai tomar...” o irmão da
fase ruim foi interrompido pelas batidas descontroladas do pai, que urrava pra
mãe, que cantarolava feliz, na ponta dos pés, dando um oi para o dia. O mais
novo se levantou chutando a cadeira e gritando: “Morram! Eu vou embora dessa
casa!”. Mariano olhou a bagunça. Foi arrebatado pela sanidade e percebeu – finalmente
- o descontrole da família. Tentou achar um motivo para a felicidade no mais
íntimo de seu ser, mas a realidade havia possuído o pobre desiludido. A raiva
foi crescendo, nascendo das mãos apoiadas na mesa que balançava com os murros
do pai, passando por seus braços, chegando ao tronco, se espalhando pelo corpo
até a cabeça. Ao chegar nesta última, Mariano dá um grito absurdamente alto,
talvez o segundo depois de seu nascimento, fala seus primeiros palavrões e joga
a comida no rosto do pai-surdo que não sabe que reação ter. A mãe olha,
chocada. O filho vai até ela, calmo, e fala no seu ouvido: “Você não canta bem,
não canta. NÃO CANTA!” e empurra a mãe que deve ter morrido antes do segundo
“canta”.
O
caçula, que havia conseguido presenciar a cena, olhou satisfeito para o irmão.
“Agora você aprendeu que quando um não quer dois não brincam, não foi,
Marianozinho?”. Mariano olhou o vegetal, a morta e o problemático e viu que
agora sim eram uma família normal. Na verdade o anormal sempre foi ele.
Laysa Menezes
3 comentários:
O que mais posso dizem além de: MARAVILHOSÍSSIMO! ?
Uau, muito bom, meus parabéns!!
Muito obrigada!
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